Vó é mãe com açúcar...
- jehmalvestuto
- 24 de jul.
- 9 min de leitura
Mesmo que ela seja a nossa queridíssima duquesa azeda e rabugenta!
O post de hoje tem cheiro de chocolate quente e gosto de bolinho de chuva (ou qualquer outra memória afetiva que você tenha associada a mãos carinhosas e enrugadas).
Hoje vim responder uma pergunta que me fizeram: Como e quando Lady Limett conheceu Lívia?
Lívia, a afilhada que, na verdade, sempre foi uma neta muito amada. Uma das muitas provas que embaixo dos resmungos e batidas de bengala, nossa duquesa resmungona tem um coração imenso. Então, sem mais delongas, segue o micro conto de hoje:

Atenção: O microconto a seguir se passa muitos anos após “Debutantes Imperfeitas” e é mais recomendado para as que já leram a série “As Horidens”. Se você, querida leitora, ainda não leu “As Horidens” e não quer arriscar algumas lágrimas, sugiro que interrompa a leitura e vá tomar um café quentinho.
A cena a seguir é linda, mas não é para os fracos de coração. Esse é seu último aviso.
Prossiga por sua conta e risco. Amo vocês.
Rose’s House, Londres, Inglaterra, 1816.
Os dedos de Lady Limett se curvaram contra o punho da bengala. O tecido da luva sendo testado por cada um de seus ossos pontudos. Onde diabos estava aquele homem e por que ainda não viera buscá-la?
— Se tiver arrumado outra no além, Alexander, não sobrará pedra sobre pedra.
— O que disse, madrinha?
A pergunta de Lívia — em resposta ao seu resmungo — chamou seu olhar para dentro do cômodo novamente. Nenhum inconveniente, já que era uma manhã como todas em Londres. Fria e vagamente acinzentada.
Soltou um resmungo e se sentou próximo à afilhada. A mão brincou com o monóculo de ouro e esmeraldas. Os olhos verdes de águia atentos a cada movimentação da jovem delicada.
— Estou de mau humor, Lívia. — O bastante para considerar Londres, seu lugar favorito no mundo, cinza demais.
A menina de traços delicados e modos de uma dama tinha os olhos azuis aflitos. Os olhos azuis de Rupert — e de Lorde Brytton, antes dele.
— Aconteceu algo, madrinha?
— Não, mas em breve acontecerá.
Ignorar o inevitável era para os tolos ingênuos e a Duquesa de Limett não era nem um, nem outro.
— Agora continue lendo as cartas, sim?
Lívia assentiu, com uma delas já aberta sobre o colo. Não tinha ideia do que se tratava. Seu pensamento havia vagueado tanto que nem sequer se lembrava do remetente.
— … e nós esperamos o bebê para meados de julho. Acreditamos que…
— Bebê? — Levantou a voz. — Que bebê?!
A jovem ergueu a cabeça, os olhos piscando, confusa.
— A neta de Lady Farrington está grávida.
— Há! — Uma risada-resmungo lhe escapou. — Essa velha. Sempre inconveniente.
— Madrinha...
— Não quero que leia mais cartas dela!
Um sorriso paciente e angelical. Vindo da criatura que não só suportava, mas lidava graciosamente e até se divertia com seu humor instável.
— Por que a senhora a detesta tanto?
A pergunta que residia em cada cidadão londrino. Ela e Laurel eram boas demais em ludibriar a todos. Chegava a ser assustador. No entanto, não precisaria fingir. Não naquela manhã.
— Ela nunca me conta nada! — queixou-se. — Aposto que essa bisneta dela já está com dezesseis anos.
Outro sorriso.
— A bebê que ainda nem nasceu.
— Isso é o que pensa, menina. — Sacudiu o indicador. — Não conhece Laurel. Ela é uma víbora!
Lívia deixou uma risada baixa escapar.
Lady Limett resmungou de novo. Aquela velha! Como ousava? A família dela procriava como coelhos. O tempo todo. Todo o tempo! E ela estava bem ali. Olhando para a moça diante dela. Sua Lívia. Seu maior propósito no mundo. Sentindo que se aproximava do momento em que lhe diria adeus.
Lívia passou para a próxima carta. Cada movimento com as mãos perfeitamente ensaiado. Ensinada desde pequena a ser uma dama, muito embora, por circunstâncias de seu nascimento, jamais pudesse ser uma.
A postura perfeita dentro do vestido azul-claro. Os lábios rosados, as feições delicadas e os cabelos cor de fogo que lembravam a duquesa de sua juventude e, principalmente, lembravam-na da menina que um dia Lívia fora.
Rose’s House, Londres, 27 de julho de 1801.
Entrara em seu quarto com o andar pesado, carregado das palavras não ditas naqueles últimos dias. Sua casa nunca estivera tão cheia. Seu caçula, Rupert, viera com os meninos. E até mesmo seu primogênito, arredio e teimoso, estava a alguns corredores, na biblioteca. No entanto, sem Alexander, a Rose’s House parecia vazia. E ela, que sempre tinha muito a dizer, jazia sem palavras, retirando-se para seus aposentos sempre que tinha a oportunidade.
Sentou-se na beira da cama. Os criados não haviam guardado nada, o único indício de que o quarto fora limpo desde o falecimento do duque era a ausência de poeira. Nada mais. A bagunça confortável de itens dele e dela, algo que seu luto havia criado, permanecia ali. Incluindo a caixa de madeira sobre a cama.
Liliana abriu a tampa e a retirou de lá com um sorriso torto. A feia boneca de pano com seu vestido bege de flores vermelhas. Impregnada de lembranças agridoces que sempre a fariam sorrir.
Ela era grata. Era grata a cada lembrança e a cada vez que seu coração doía com a ausência dele. Era grata porque somente um amor tão grande deixaria marcas tão profundas, e poucos sobre a terra tinham o privilégio de viver um. Ela o tivera. Diabos! Ela o tinha! Alexander ainda vivia dentro dela, dos filhos e netos que haviam tido.
Batidas na porta.
— Mamãe?
Vivia, inclusive, em seu filho caçula intrometido, que abria a porta, mal esperando por uma resposta dela. Resmungou novamente.
— A senhora está bem?
Bem, de fato. Escondendo a boneca com rapidez.
— Eu estou divina! — afirmou.
Rupert não pareceu acreditar. O olhar buscando o quarto com uma atenção desconcertante.
— Isso está assim desde que papai morreu?
— Não. O espírito dele veio aqui ontem à noite e bagunçou tudo.
Manteve o semblante sério. O filho pigarreou, ciente de que fizera uma das muitas perguntas que a mãe não queria responder. Ela ergueu uma sobrancelha. Sua paciência por um fio.
— Mãe, eu…
— Onde está seu irmão?
— Alexander?
E ele lá tinha outro?
Assentiu.
— Ainda na biblioteca.
— Há! — Para variar.
O mais novo duque não fizera um movimento sequer para ocupar seus aposentos ou sua posição. Ele agia como um filho cujo pai estava viajando. Cuidava de tudo, mas se recusava a se apropriar do que fosse.
— E o que ele tanto faz lá, menino?
O caçula deu de ombros.
— Cada um lida com o luto de um jeito.
— E o seu jeito é vir aqui me atormentar?
Sua reclamação não o abalou, tampouco o fez rir. Somente lhe deu coragem para entrar e fechar a porta.
— Tenho algo para lhe dizer. — Olhos no chão. O semblante envergonhado. — Não tive coragem para contar enquanto papai estava vivo.
Um resmungo. Mais suave daquela vez. Parecia sério demais para algum comentário mordaz. A duquesa decidiu que se calaria.
— Lembra-se de quando briguei com Jane?
Liliana olhou para o filho dos pés à cabeça, esperando que ele confessasse que havia enlouquecido.
— Aquela briga sete anos atrás.
Aquilo não ajudava em nada.
— Tenha piedade, menino! Eu não me lembro das minhas brigas com o seu pai, vou me lembrar das suas com sua mulher?!
Sinceramente! Será que perder a esposa roubara o juízo de seu filho? Onde estava Alexander para lidar com aquelas crianças? Não o filho, o pai!
— Surpreende-me que você se lembre.
— Não poderia esquecer.
O tom sério, levemente melancólico. Não gostava daquele tom. Nem mesmo um pouco.
— Aquela briga teve consequências, mamãe. Eu — engoliu em seco — tive uma criança.
Lady Limett soltou uma risada curta, levantando-se.
— É claro que teve. — Certo, seu filho estava louco. — Três crianças, para ser mais exata. — Mostrou com os dedos. Ele parecia precisar de ajuda. — Cristhian, Charles e William.
— Não, mãe. — O homem bonito a corrigiu. — Tive uma criança sem Jane. Uma menina.
A duquesa se sentou novamente. O único indício de que a revelação mexera com ela. Sua coluna ainda estava impecável e a expressão plácida. Por dentro, estava gritando.
Aquilo explicava muita coisa. Principalmente o fato de ele ter escondido do pai seu segredo. Alexander fora fiel a ela até seu leito de morte, ele jamais encararia uma traição com bons olhos. Não, ele não desprezaria a neta, fosse quem fosse, mas seria duro com Rupert. Muito duro.
— Se está me contando porque quer tapinhas nas costas de aprovação, então perdeu seu tempo.
— Eu jamais esperaria isso da senhora.
— Ótimo! Assim, nos poupamos de aborrecimento.
Eles se encararam por um longo momento. Ela, em busca de respostas, ele, do que dizer. Rupert caminhou em sua direção, tomou as mãos dela, ajoelhou-se e a beijou.
— Eu espero que você esteja assim para rezar, menino, porque se for para me bajular, esqueça.
Era ainda menos maleável que o antigo duque.
— A mãe dela morreu no parto e eu não sou mais suficiente para criá-la.
— Rupert Limett, não ouse me perturbar! — advertiu. — Eu estou de luto, pelo amor de Deus.
— Lívia está aqui na Rose’s House. Eu a trouxe na esperança de que ao menos a visse. Ela precisa de uma figura feminina forte para educá-la e a senhora parece precisar de…
— Eu não preciso de nada! — interrompeu-o. As mãos se desvencilhando das dele. — De nada! Estou bastante ocupada.
O menino ousado piscou algumas vezes, incrédulo.
— Está?
— Estou! — definiu irritada. — E não quero perturbações! Já tenho planos para os próximos dias.
Ele inclinou a cabeça. A dúvida estampada no olhar.
— Vou ficar bem aqui, no meu quarto, em paz, esperando seu pai me buscar.
O queixo dele caiu.
— A senhora ainda é jovem! Não pode fazer isso!
— Não posso?
Péssima escolha de palavras.
— Pois observe!
O dedo indicador em riste. Movimentos precisos ao se deitar na cama com as mãos unidas sobre o abdômen. Os olhos fechados e o semblante sereno.
— Mamãe…
Nem um movimento. Nenhum sequer.
— Ela precisa de alguém.
Um cenho franzido, logo desfeito.
— Sei que não poderá criá-la como neta, mas não seria maravilhoso ter uma afilhada?
Um olho aberto. Somente um olho e se fechou novamente.
— Ela se parece com a senhora, sabia disso?
Lady Limett se levantou.
Ah! Menino infernal! Ela sempre soube que a personalidade dele era purinha a do pai.
— Onde está ela?
Rupert abriu um sorriso. Mínimo, pois temia pela própria vida, mas pareceu alegre demais conduzindo-a até a sala de estar azul.
— Isso é coisa sua, Alexander! — resmungou, passo após passo. — Essa sua história de que eu sempre vou ter um propósito! Problemas para resolver... você quis dizer uma montanha de problemas. Um atrás do outro e…
A duquesa parou, bem ali, na porta da sala de chá. Uma menina que mais parecia uma boneca de porcelana, pintada com primor, analisava com uma atenção desconcertante o jogo de chá de flores azuis. Liliana o detestava, mas, como muitas coisas, ele combinava com a Rose’s House. Bem como aquela garotinha com um laço grande nos cabelos ruivos.
— Lívia — Rupert chamou em tom carinhoso.
A menina voltou sua atenção para ele. Os olhos azuis como o mar — lembrando Liliana de seu falecido pai — arregalaram-se assim que pousaram nela. Surpresa? Intimidada? Não sabia ao certo.
— Essa é a Duquesa de Limett — apresentou-a com cortesia.
— Olá, criança — assentiu em um cumprimento amigável.
A menina se aproximou lentamente, com uma mistura de respeito e valentia.
— Vossa Graça.
As mãos ao lado do corpo, os joelhos dobrados no tempo certo. Uma reverência impecável. Ora, a menina tinha modos!
— Por que suas roupas são pretas?
Bom, talvez não tanto assim.
A duquesa se abaixou um pouco antes de responder.
— Eu perdi alguém especial há alguns meses, mas… bom, parece que ele acaba de me mandar um presente.
Uma exclamação de surpresa.
— Eu posso ver?
A duquesa riu, acompanhada por um sorriso de Rupert. A primeira vez que ria desde que Alexander se fora.
— Venha, criança — colocou a mão no ombro da pequena —, vamos tomar um chá.
Rose’s House, Londres, Inglaterra, 1816.
Alexander lhe mandara um presente, de fato, e agora o presente dele era uma jovem bela que, em breve, completaria vinte e dois anos e não poderia passar a vida debaixo de um teto com uma velha resmungona. Ela jamais permitiria.
— E nosso cão, Charles fugiu essa manhã. Estou devastada.
Lady Limett franziu o cenho. Onde Lívia estava? Ah, sim! A carta de Lady Berthany. Era bem-feito! Quem mandava colocar o nome do neto dela em um cachorro?
— Lívia, pelo amor dos céus! Diga-me que há alguma carta aí que não seja composta por lamentações de velhas tediosas!
A jovem ergueu o olhar e então passou a vasculhar a pilha de correspondências, sem muito sucesso em sua empreitada. A duquesa revirou os olhos sem esperanças. Era isso. Ela casaria Lívia e morreria. Causa da morte: tédio.
Alexander fora benevolente ao declarar que ela sempre teria um propósito. Ela precisava de um para viver ou definharia.
Lívia se interrompeu em uma carta. Lendo-a com atenção.
— É do Tenente Horiden, madrinha.
Ela lhe entregou a missiva. A duquesa levou o monóculo ao olho.
— Agora ele é Lorde Graivil e está pedindo ajuda para casar suas cinco primas.
Um sorriso de lado surgiu no rosto enrugado de Lady Limett. A carta pendendo ao lado do corpo. Cinco meninas. Cinco garotas que tinham tudo para ser um desastre social e uma dor de cabeça.
— É, Alexander — bateu a bengala no chão algumas vezes —, eu tenho muito trabalho a fazer. Parece que você terá que me esperar um pouco mais.
Feliz dia dos avós!
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